Cassino, 25 de março de 2020.
Tempos bicudos este que vivemos, tempos de clausura, tempos de saudade da
nossa tão mal falada rotina dos dias. Tempos encardidos, que chegam agora como
consequência dos nossos atos, como penitência imposta ao nosso constante
desrespeito ao meio ambiente e poucos ouvidos aos gritos de alerta da ciência. Tempos
de pandemia, tempo de vermo-nos dentro dos filmes de ficção científica a que
tanto emprestamos audiência.
Duvido da racionalidade do homem quando observo que permanecemos burros e
continuamos cometendo os mesmos erros anos após anos, em escalas cada vez
maiores. Impactamos em demasia, causamos um desequilíbrio sem igual nos
sistemas naturais do Planeta, esmagando espécies e destruindo ecossistemas
inteiros todos os dias, há longas décadas! Cegos e surdos por livre arbítrio
(ou por irresponsabilidade?), criamos as condições perfeitas para esse tipo de
vida daninha prosperar!
Estávamos cientes do que estamos fazendo e, agora, impotentes, atônitos,
assistimos esse vírus fdp entrando em cada casa mundo afora, passando
por baixo das portas, pulando janelas entreabertas, esgueirando-se nas mínimas
frestas, infectando com morbidez o ar e o humor, matando sem pena as nossas
gentes e dizimando inúmeras famílias que vão viver para sempre com essa nódoa
no coração.
E dessa vez o bichinho veio com força, vira pó, se mistura a
micropartículas no ar, fica invisível e resiste a quase tudo. Dessa vez, com a
foice em punho, o danado não vai embora sem antes levar consigo o rico e o
pobre, o gordo e o magro, o bonito e o feio, o homo, o hetero e o bi, o negro e
o branco e o amarelo e o vermelho, os presidentes debilóides, como o nosso (?por que no te calas?), e os
zés-ninguéns, como eu e tu!
Sim, vamos viver para sempre lembrando que não nos foi dada a
oportunidade de uma última palavra, de um último abraço ou de um último beijo
na testa. Sim, não há como fugir de uma coisa assim. Por mais que se corra, não
se foge da própria sombra!
Vamos morrer para sempre, todos os dias, remoendo a lembrança de que os
últimos dias de algum nosso amado foi de sofrimento solitário, na busca de um
último suspiro em meio a tanta falta de ar, suspiro que virá na forma de uma
bênção, tamanha é a desgraça que nos assola.
Só que desta vez o filme não é de ficção científica, é a dura realidade, uma
obra-prima de terror, onde a criatura devora as entranhas do criador sem sequer
sair das nossas sombras!
O futuro, aquele berrado como sombrio nas décadas de 1980 e 1990, parecia
sempre distante, mas em pleno 2020 enfim chegou! E não se trata de falar em
profetas do apocalipse nem dos estúdios de Hollywood, mas de lembrar de todos
os leigos anônimos, de todos os ambientalistas
e cientistas, loucos ou não, que nos anunciavam que era óbvio que estávamos
rumando à extinção! Lembrar de todos aqueles a quem nunca quisemos dar ouvidos,
nem atenção.
Se não soubermos, se não conseguirmos enxergar o que nos trouxe a essa
situação de calamidade pública mundial, se permanecermos insistindo loucamente
nos mesmos erros, se quisermos continuar cegos e surdos, nossa espécie irá
sumir, nós vamos sucumbir, sumir da face dessa Terra. No matter what!!!
Aqui, de dentro dos meus muros, vou tentando adivinhar o que vai ser de tudo
isso, o que será, afinal, de nós. Penso que só estamos pagando o preço, na
Natureza nenhuma ação fica sem reação, e a contramola que insistia em resistir não
consegue mais manter o equilíbrio porque está, talvez de forma irremediável,
combalida, infectada, sem respirador disponível!
Me pergunto se, apesar da nossa inteligência e raciocínio, adereços que
nos fizeram descer das árvores e “dominar o mundo”, queremos ser uma raça
devastada por nós mesmos? Por nosso mau uso dos recursos naturais que ainda
estão por aí, clamando por socorro? Por nossa incapacidade de entender que tudo
é uma coisa só? Por não conseguirmos ver que o equilíbrio não vem sozinho, ele depende
das nossas atitudes? E que uma merda que eu faço aqui no meu mundinho atinge
todo esse Mundão? Será tão difícil ver que a contramola não vai resistir?
Não nos é dado pirar, nem desistir, pelo menos por enquanto não, pois não
sabemos quanto tempo mais ficaremos nas nossas casas, olhando para dentro de
nós mesmos. São tempos de introspecção, e bem sei o quanto pode ser difícil
conviver consigo mesmo – muitas vezes nem eu mesmo me suporto.
É hora de ficar em casa!!! E de não dar ouvidos ao Sr. Presidente Demente-naro!
É a chance de reencontrarmo-nos com quem realmente somos, hora de olhar
para dentro do peito e resgatar de uma gaveta qualquer, sob o mais esdrúxulo
argumento que for, qualquer um que seja, um fio de esperança em tempos
melhores. E em pessoas melhores! Em nós mesmos, melhores!!!
Manter a esperança é necessário, porque, enquanto espécie, sobrevivemos
até aqui por causa dela. Foi ela a alavanca da humanidade enquanto raça. É a
esperança, algo sempre lançado sobre o futuro de nós mesmos, que sempre nos faz
batalhar hoje por um dia melhor amanhã. E não desistir nunca.
A minha esperança, particular e fina, é que o ser humano, uma vez a salvo
dessa peste, recupere a saúde e o bom senso, desacelere, revisite seu lado
animal, repense seu consumo, reveja sua atitude, exerça a sua liberdade sem que
para isso tenha que invadir o espaço do outro ser – animal, planta ou estes insanis sapiens que vivem por aí, de um
lado para o outro, em 2 patas.
Essa quarentena forçada pode ter um lado bom. Precisamos brecar um pouco nosso
ritmo alucinante. (Por que, para que, corremos tanto?). Acalmar nosso
imediatismo. (Por que, para que, queremos tanto?). Reorganizar nossos espaços.
(Por que, para que, temos tanto?). Parar e respirar. Lembrar da nossa condição
humana. Relembrar a compaixão, a piedade e a solidariedade. Ver o que vale a
pena, identificar o que e quem nos é caro, importante. Precisamos ter certeza não
só daquilo que quereremos daqui para frente, mas principalmente para firmar o
que não queremos!
Estamos hoje privados da nossa liberdade, tal qual os criminosos encarcerados,
só que sem uma sentença definitiva, sem recurso e sem prazo assinado. Em 43
anos de vida, a mim, é a primeira vez que sucede. Minha filha, que tem só 8
anos, já está experimentando o que é isso, sente em cada dia que passa o peso
de estar sob uma ameaça.
Sente o exílio dentro de casa, porque sua rotina foi abruptamente
interrompida. Sente saudade de estar na casa das avós, do convívio com os
amigos, dos mimos das Dindas! É preciso ter paciência no manejo dos dias e
empatia no passar das horas, trocando de lugar com a criança que por ora não tem
amigos, escola, ginástica, inglês, padel nem natação.
Minha filha é consciente sobre essa maldita doença, aderiu a todas as
medidas preventivas, não reclama por estar presa em casa, e sabe que, daqui
para frente, será assim sua vida: de tempos em tempos, terá que seguir
protocolos públicos impostos de cima para baixo, pois as pestes e fenômenos
naturais tornar-se-ão ainda mais frequentes.
Ela sabe que isso vai passar e que em breve estaremos todos juntos
novamente, com beijinhos e abraços liberados! Ela também sabe que muita gente
está morrendo, e tem medo disso, se preocupa, enche os olhos d’água ao imaginar
que o coronavírus pode maltratar um dos nossos! Apequena o seu coração essa
hipótese!
Entristece a mim, como pai, vê-la assim e eu vejo que o ruim disso tudo,
o pior dessa desgraça toda, é que, assim como as guerras, essa pandemia pode
acabar com a inocência das nossas crianças, pode roubar parte de uma infância
que não tem volta.
Nossas crianças, nesse momento, gostemos ou não, só tem a nós! É uma
grande chance de estreitamento de laços entre pais e filhos que durante o nosso
frenesi diário mal interagem. Sejamos criativos e inteligentes: é preciso, e ainda
mais precioso, aproveitar essa desgraceira para (re)conhecermos nossas
crianças!
Porque são elas, são as nossas crianças, os filhos de cada um de nós, que
ainda poderão fazer diferente, bem melhor do que nós estamos fazendo. Por uma
questão de tempo, são eles, e não mais nós, a esperança de tempos de
equilíbrio. Se não ajudarmos elas nessa empreitada, é porque não as amamos de
verdade! Ajudemo-las desde já!
A nós, a cada um a que essas palavras chegarem e a todos aqueles a que
elas não chegarem, a nós cabe a responsabilidade de efetivamente mudar os rumos
da nossa história na Terra, sob pena de sermos uma das últimas gerações a
desfrutar de todas as suas gostosuras e criaturas. De nada adianta reciclarmos
o nosso lixo, se não reciclarmos a nós mesmos!!!
Quando sairmos das nossas casas vão ser tempos de reflexões e comemorações.
Serão tempos de encher nossas casas com as nossas gentes – ou quem sobrou
delas. Tempos de olharmos cada um daqueles que agora nos faz tanta falta nessa
reclusão e sorrirmos juntos, só porque sim, só porque faz bem. Serão tempos de
trocarmos os “ois” frios das telas dos smartphones, por abraços quentes e
apertos de mãos honestos. Serão tempos de olhos nos olhos, a bem menos do que
2m de distância.
Que sejam, também, tempos de mudanças, no todo e em cada um de nós. Quem
sobreviver, verá!!!
Werner
Hartmann Spotorno